Este é o último artigo de uma série de três, onde cruzamos temas atualmente muito populares, mas que raramente são abordados de forma conjunta: Internet of Things (IoT ou Internet das Coisas), Machine Learning e User Experience (UX ou Experiência do Utilizador). Apesar de não serem habitualmente tratados em conjunto, estes temas têm que se articular para responder ao grande objetivo de qualquer negócio de consumo: antecipar as necessidades dos utilizadores e agir.
Avatares de serviço
No artigo “Serviços IoT: avatares de serviço” vimos como, no âmbito de produtos de consumo, a experiência do utilizador fica enriquecida quando os equipamento e dispositivos não se limitam a uma utilização local e proporcionam, isso sim, uma experiência uniforme, através da cloud, num serviço que pode ser usado em qualquer lado.
Isto resulta numa maior valorização do serviço e na consequente desvalorização dos canais, equipamentos e dispositivos utilizados, que passam a ser considerados apenas extensões do serviço, a que denominamos “avatares de serviço”. O maior valor para o utilizador passa a estar no serviço.
Para ilustrar esta tendência, podemos ver a imagem seguinte, retirada de um anúncio da SmartThings (empresa adquirida pela Samsung) especialista em controlo e automação de residências. Se repararmos, a proposta de valor do serviço é bem clara, enquanto que os dispositivos usados são brancos, fotografados sobre um fundo branco, como se não fossem nada importantes.
Previsão de comportamentos
No artigo “Serviços IoT: a magia da previsão de comportamentos” discutimos como um serviço IoT em cloud deve oferecer inteligência e conhecimento, não se limitando a repetir aquilo que os utilizadores fizeram no passado, mas tentando antecipar os seus desejos, como se soubesse o que eles pretendem, melhor do que os próprios utilizadores. Regra geral, à medida que um serviço se torna mais “inteligente”, também se torna mais valioso.
Novos padrões de experiência dos utilizadores
Como o Mike Kuniavsky descreve nos livros Observing the user experience e Smart Things – Ubiquitous Computing User Experience Design, os desafios que se colocam no desenho da experiência de utilização revelam-se quando se passa de um nível genérico de abstração (ex: circulação de carros autónomos na via pública) para um nível concreto e objetivo (ex: como é que um peão tem a certeza que um carro autónomo que se dirige a ele, já percebeu que da sua intenção de atravessar a estrada).
Neste artigo, mais do que dar respostas, vamos chamar a atenção para grandes desafios que se colocam no desenho da experiência dos utilizadores, num cenário em que estamos rodeados de sensores, atuadores e sistemas com um crescente nível de inteligência e autonomia.
Um mar de cenários sedutores
Com o aumento da inteligência e autonomia dos sistemas, podemos libertar a nossa imaginação e pensar em inúmeros cenários sedutores em que a nossa vida seria melhor e mais agradável.
Desde os locais de trabalho que se adaptam para serem mais eficientes e confortáveis, aos carros que “adivinham” e otimizam as nossas viagens, passando pelas casas que “preveem” os nossos desejos e necessidades, tudo parece que será possível com a evolução tecnológica. Na realidade, se pensarmos num qualquer objeto que habitualmente nos rodeie, vamos provavelmente encontrar uma forma de a tecnologia o tornar melhor e mais conveniente.
Uma cadeira, por exemplo, pode aprender a ajustar-se à minha postura e ao local da sala onde me costumo sentar. Poderá até haver um serviço de fornecimento de cadeiras que conheça os meus hábitos, e qualquer cadeira, desde que ligada ao sistema central, poderá ajustar-se automaticamente quando me sentar nela… e quando me levantar, deslocar-se-á sozinha, para o seu local de arrumação.
Por falar em cadeiras, aqui está um vídeo sobre cadeiras de escritório, que embora não sejam autónomas, sabem arrumar-se sozinhas, quando recebem ordens.
Desafios para a experiência do utilizador
Para nós não é habitual que “coisas” mecânicas tomem decisões sozinhas. No entanto, com a evolução dos sistemas no sentido de ficarem gradualmente mais inteligentes e autónomos, e com a entrada da tecnologia nos produtos de consumo, há desafios relacionados com a experiência dos utilizadores que teremos que ultrapassar.
Expectativas sobre comportamento autónomo
À medida que os equipamentos se começam a adaptar a nós, como sabemos que eles se estão a adaptar? Devemos tratar os equipamentos como se fossem animais? Colocamos-lhes placas ou luzes com um símbolo especial que acende quando os objetos se estão a adaptar, como o círculo vermelho que vemos quando uma câmara de filmar está a gravar?
No exemplo da cadeira, deverá esta vibrar ou fazer um som especial a indicar que se está a ajustar? Como é que um utilizador olha para uma cadeira e sabe se é “uma daquelas que se adaptam” ou se se trata de uma cadeira “normal”?
No desenho da experiência de utilização dos sistemas autónomos, temos que garantir que o comportamento está de acordo com as expectativas dos utilizadores, ou ajustar as expectativas do utilizador para estarem de acordo com as capacidades e com o estado dos sistemas.
Incerteza
Uma ironia dos sistemas preditivos é que eles não são previsíveis. Quando usamos uma máquina ou um sistema nos dias de hoje, esperamos que tenha um comportamento bem definido, mas à medida que os sistemas ficarem inteligentes e autónomos, será mais difícil prever o seu comportamento.
Hoje o nível de correção, de “acerto na previsão”, dos atuais sistemas preditivos ronda os 60% – 70%. À primeira vista pode parecer uma boa percentagem, ter um sistema a fazer previsões e acertar cerca de 70% das vezes. Mas pensando melhor, se quando o sistema falha nós somos prejudicados, 70% já não parece tão bom, porque o que sentimos é que somos prejudicados 30% das vezes!
E mesmo que o nível de correção de comportamento dos sistemas suba para os 90%, mesmo assim, não parece suficiente, se a falha for frequente ou se provocar danos ou incómodos consideráveis.
Na realidade, o facto de estarmos expostos a um sistema que pode ter um comportamento indesejado provoca ansiedade. E ansiedade é uma forma de esforço cognitivo, desagradável para a experiência do utilizador. A ansiedade, provocada pela hipótese de um comportamento indesejado por parte de um sistema pode tornar a experiência pior do que se o sistema não tivesse qualquer tipo de comportamento automático.
Assim, no desenho da experiência de utilização dos sistemas, temos de pensar quais as escolhas que temos que tomar, para garantir que um sistema continua funcional e com valor, mesmo quando, durante uma parte significativa do tempo, o seu comportamento não é o desejado.
Controlo
Como é que podemos garantir que mantemos algum nível de controlo sobre os sistemas inteligentes e autónomos, quando eles são, por definição, baseados em estatística e imprevisíveis?
Acontece por vezes que, ao treinar um sistema para ser inteligente, ele fica “viciado”, com um modelo tão ajustado a uma realidade e tão certo das suas previsões, que não se consegue corrigir adequadamente quando a realidade muda (chamado overfitting ou overtraining). Mas se o sistema estiver “viciado” e só puder ser ajustado através do meu comportamento, então como é que o consigo corrigir?
Os motores de recomendação mais sofisticados, por exemplo, são sistemas “inteligentes”, mas que podem ficar viciados. Para evitar que isso aconteça, entre outras medidas, é habitual que quando os sistemas fazem sugestões, indiquem a razão porque o fizeram, para que os utilizadores possam, de alguma forma, controlar o seu comportamento (ver imagem do Spotify, abaixo, onde explica as sugestões que está a dar). Mas o que acontece se o único interface que eu tiver com o sistema for um aspersor para rega?
Olhando para a indústria
Nos mais recentes artigos desta série temo-nos focado em produtos de consumo. Mas na indústria, onde muitos dos problemas de experiência do utilizador que discutimos estão a ser endereçados há décadas, já temos soluções estáveis.
Na tabela seguinte (“Levels of Automation of Decision and Action Selection” por Parasuraman et al 2000) podemos ver uma classificação do nível de automação de decisão na relação entre sistemas e humanos.
Embora possamos um dia chegar ao nível 10 de automação de decisão (“o computador decide tudo, age autonomamente, ignorando o humano”), a maior parte dos sistemas de Machine Learning que atualmente estão disponíveis no mercado, estarão algures nos níveis 5 (“executa a sugestão se o humano aprovar”), 6 (“dá ao humano um tempo restrito para vetar antes da execução automática”) ou 7 (“executa automaticamente, e então informa o humano obrigatoriamente”).
O problema é que a maior parte das soluções encontradas para a indústria exigem conhecimento de como os sistemas funcionam internamente, pelo que a interação com os sistemas é feita por técnicos especializados.
Assim, as soluções utilizadas na indústria não são diretamente aplicáveis em produtos de consumo, porque o conhecimento necessário para lidar com estes sistemas exige uma sobrecarga de esforço cognitivo e é necessário que os benefícios de utilização do sistema justifiquem este esforço.
Podemos olhar para as soluções industriais para procurar inspiração, mas todo o desenho da experiência dos utilizadores em produtos de consumo neste novo contexto de IoT e Machine Learning tem que ser pensado e testado.
Resumindo
Há grandes desafios no desenho da experiência dos utilizadores, em cenários de interação com sistemas gradualmente mais inteligentes e autónomos.
As expectativas que os utilizadores têm sobre a inteligência e autonomia dos objetos e sistemas que os rodeiam, devem estar alinhados com a real inteligência e autonomia desses sistemas.
No desenho da experiência de utilização dos sistemas, temos que garantir que um sistema continua funcional e com valor, mesmo quando, durante uma parte significativa do tempo, o seu comportamento não é o desejado.
É necessário assegurar, pelo desenho da experiência de utilização dos sistemas, que apesar da sua inteligência e autonomia, mantemos algum nível de controlo.
Na indústria, muitos dos problemas de experiência do utilizador que discutimos já têm soluções estáveis. No entanto, estas soluções não são diretamente aplicáveis em produtos de consumo, porque exigem demasiado esforço cognitivo.
O desenho da experiência dos utilizadores em produtos de consumo neste novo contexto de IoT e Machine Learning, com sistemas inteligentes e autónomos, tem que ser continuamente pensado e testado.
Podemos ajudá-lo a desenhar e implementar os seus projetos de IoT, contacte-nos.
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