O tema dos carros autónomos (ou auto-conduzidos) tem invadido a discussão sobre os avanços tecnológicos. A paixão dos media e dos adeptos de tecnologia é compreensível pois o avanço da realidade desafia a ficção e todos nós compreendemos a revolução que haverá quando não for preciso conduzir um veículo para ir de um ponto A para um ponto B. Mas quando será realidade e que passos intermédios viveremos até esse momento tão desejado? Qual é na realidade a distância para algo que todos dizem que vai acontecer, mas que parece tão complexo?

A corrida está lançada e, para além dos grandes gigantes da indústria automóvel (GM, Ford, Daimler, Renault-Nissan, BMW, VW, PSA, Volvo, etc), outros novos competidores têm projetos avançados nesta área: Tesla, Google (agora já com a marca Waymo), Uber e diversas startups. O tema não é para menos: uma disrupção tecnológica desta dimensão muito provavelmente alterará fortemente o panorama da indústria automóvel e alguns dos atuais gigantes poderão simplesmente desaparecer.

Mas as alterações em curso na indústria automóvel são, na realidade, muito maiores. Dentro de poucos anos não reconheceremos a forma como nos deslocamos em veículos individuais ou familiares, tantas são as alterações em curso. Senão vejamos. Temos a revolução elétrica: ainda que menos de 1% dos carros hoje sejam elétricos é já facilmente percecionável que o reinado exclusivo dos combustíveis fósseis está a terminar. Com as baterias a aproximarem-se já dos 500 kms de autonomia, iremos deixar de poluir as cidades com o fumo dos escapes.

Depois temos a revolução da propriedade: hoje os jovens já tiram muito menos a carta do que antes, o que deixa claro que possuir um veículo está a deixar de ser uma prioridade. A popularização de modelos como o Uber ou os mais modernos fenómenos de car-sharing (ou bike sharing como este da emel ou scooter-sharing como o ecooltra, ambos disponíveis em Lisboa) prometem fazer do veículo algo que se usa como um serviço, ao invés de tradicional objeto de propriedade. E a somar a isto tudo, claro, teremos carros autónomos, que se conduzem sem intervenção humana. Como nos deslocamos no início do século e como o faremos a meio do século, serão coisas muito diferentes.

Categorias de Auto-Condução

Para evitar confundir conceitos de auto-condução muito diferentes, a associação de engenheiros SAE International desenvolveu uma classificação que tem sido aceite como um padrão e facilita a comunicação.

Nível 0 – Condutor Apenas:  O condutor humano controla tudo: direção, aceleração, travagem, etc.

Nível 1 – Assistido: O condutor ainda controla a maioria das funções, mas uma em particular já é automatizada pelo carro (direção, velocidade, etc). Muitos carros hoje estão neste nível com a função “Cruise Control”.

Nível 2 – Semi Automático: tanto a aceleração como a direção podem ser assumidas pelo veículo, mas o condutor tem de estar sempre preparado para tomar o controlo de volta. Alguns carros de topo de gama já garantem este tipo de condução em autoestrada, por exemplo. No entanto, em alguns casos, periodicamente o condutor tem de voltar a colocar as mãos no volante.

Nível 3 – Fortemente Automático: os condutores ainda são necessários, mas podem transmitir a condução completa para o próprio veículo em certas condições concretas de trânsito ou meteorologia. O condutor deixa de monitorizar em detalhe a condução, mas pode ser chamado a voltar ao controlo. Muitos dos projetos dos fabricantes atuais ou dos novos “players” estão algures neste nível. No entanto os desafios são elevados pois a transição do controlo para o carro ou de volta ao condutor coloca dificuldades relevantes.

Nível 4 – Totalmente Automático: o veículo é capaz de realizar a viagem inteira, garantido condução segura e monitorização das condições da estrada. No entanto cada veículo só pode operar autonomamente no contexto para o qual foi desenhado (ex estradas de alcatrão), ou seja, não garante todos os cenários de condução.

Nível 5 – Sem Condutor: O veículo é completamente autónomo e é capaz de uma condução semelhante à de um humano, em qualquer situação (ex: estradas de terra, condições meteorológicas extremas, etc).

Desafios Relevantes

Apesar do entusiasmo generalizado, o caminho para os carros autónomos não é simples. Há ainda desafios complexos, de diversas naturezas. Eis alguns exemplos (não exaustivos).

Desafios técnicos – Se no campo do hardware a tecnologia já está muito avançada, no software ainda não é bem assim. Apesar dos imensos avanços nos campos do processamento massivo de dados e da inteligência artificial, ainda precisamos de sofisticar o software. Por exemplo, na área de visão por computador (um dos ramos da inteligência artificial) ainda não estamos seguros de ter atingido o objetivo. Um exemplo que habitualmente se dá é o de um veículo de condução autónoma conseguir identificar, por exemplo, um polícia que está a acenar para encostar. Não é evidente que as soluções de software de hoje consigam distinguir um polícia de, por exemplo, alguém vestido com as mesmas cores e um boné similar que, por acaso, está a acenar para alguém conhecido.

Desafios económicos e sociais – Dado que o transporte pesado de mercadorias é aquele que se afigura mais apto a chegar ao nível 4 rapidamente, já se pensa que em breve toda a classe de condutores de pesados e toda a economia de estrada (hotéis, restaurantes, assistência em viagem) pode entrar em forte recessão. Mas também estão ameaçadas outras atividades económicas de condução (táxis, Uber, autocarros, escolas de condução), oficinas (vai haver menos acidentes), construção de infraestrutura rodoviária como semáforos e sinalética de estrada (os carros autónomos não precisam), etc. E por fim temos os seguros, que vão com certeza sofrer enorme transformação, pois o cliente pode mudar (os fabricantes, os donos das frotas), mas com certeza a natureza dos riscos também muda tremendamente.

Desafios legais – A legislação habitualmente demora muito mais tempo a evoluir que a tecnologia e o campo automóvel é, e será, um desafio cada vez maior. Hoje em dia não se podem usar em Portugal os avanços de nível 2 disponíveis em alguns modelos de topo de gama alemães porque a legislação não permite que o condutor não tenha o controlo completo do volante. E na Alemanha este tema evoluiu, mas só recentemente. Podemos também questionar o conceito de condutor, em que a legislação se baseia. Esse condutor, que domina o comportamento do veículo, cada vez menos o fará, o que levanta questões relevantes sobre responsabilidade perante acidentes. Quem será responsável, o condutor, o fabricante do veículo? O fornecedor do software?

Desafios de segurança – Se os carros vão ser conduzidos por computadores, então estão vulneráveis a ataques informáticos. Como evitar que os veículos possam ser usados para o crime (exemplo: transportar-me para um local para eu ser assaltado)? Ou, num cenário mais próprio de ficção científica, alguém controlar uma grande quantidade de veículos ao mesmo tempo? Será assim tanta ficção?

Desafios éticos – A este nível colocam-se questões importantes e preocupantes. Imaginemos a situação limite de um acidente que o veículo não consegue evitar (porque é provocado por terceiros, por exemplo) mas que pode ter duas vítimas alternativas caso o software opte por guinar à direita ou à esquerda. Qual deve ser a escolha feita pela equipa de programação do carro autónomo? Deve ter em conta a idade ou o género das potenciais vítimas? Ou deve ter critérios distintos de proteção à vida entre passageiros e transeuntes? Na prática estamos a dizer que máquinas vão estar em situações que determinam vida ou morte e, portanto, o tema tem de ser discutido.

Mas afinal é para quando?

Na realidade ninguém sabe ao certo quando teremos carros autónomos, mas parece haver uma opinião mais comum que diz que atingiremos o nível 4 em aproximadamente 10 anos. Seja como for, e como disse o Carlos Tavares (líder do grupo PSA) no Websummit em novembro passado, só sabemos que vamos lá chegar, porque é inevitável que ultrapassemos todas as barreiras.

No final teremos um conceito de carro muito diferente: se precisamos de cortar o cabelo é natural que naquele dia chamemos um veículo com serviço de cabeleireiro, que nos renovará o visual até ao trabalho. Ou se tivermos de estar no dia seguinte cedo noutra cidade chamamos um veículo-hotel, elétrico e silencioso, que nos proporcionará um quarto para dormir enquanto viajamos. Acordamos no hotel de destino, a tempo do duche e pequeno-almoço.

E porque, na realidade, a disrupção é cíclica, inspiremo-nos no exemplo seguinte, que nos mostra quão rápida pode ser a evolução dos transportes numa cidade. Como serão as nossas cidades dentro de 13 anos?

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